A REVOGAÇÃO DO DECRETO 35.106, DE 1945: Os inquilinos municipais passam a poder ser despejados se derem às casas uma utilização “contrária aos bons costumes”!
Artigo de Opinião de Rui Sá, publicado no jornal Público
Várias pessoas me têm questionado sobre as razões de o Grupo Parlamentar do PCP se ter abstido na votação da proposta do PS para a revogação do famigerado Decreto 35106, de 1945, que o salazarismo produziu e que permitia, por exemplo, que as famílias fossem despejadas de habitações municipais pela “simples” razão de se tornarem “indignas do direito de ocupação” (literalmente!).
As dúvidas são pertinentes, e por isso interessa conhecer melhor o processo, até para sabermos como as coisas funcionam na “Casa da Democracia” que é (ou devia ser…) a Assembleia da República (AR).
Depois de o ter feito em 2003, sem sucesso, o Grupo Parlamentar do PCP reapresentou, nesta legislatura, um projecto de revogação deste Decreto (tal como o BE). A AR, em Outubro de 2005, decidiu que estes projectos deveriam “baixar”, sem votação, à Comissão de Poder Local, Ambiente e Ordenamento do Território, que ficava com um prazo de 45 dias para os apreciar.
Durante três anos, o processo esteve a “marinar” nesta Comissão, dado que o PS tudo fez para adiar a sua análise, com o argumento de que o Governo iria apresentar uma iniciativa sobre habitação social.
Na ausência desta iniciativa, o Grupo de Trabalho criado para o efeito (que teve uma participação activa de Deputados do PS, PSD, PCP e BE) acabou por apreciar os projectos e consensualizar um “texto de substituição” (que revogava o Decreto 35106), que podia, assim, passar à votação na Comissão e, posteriormente, no Plenário da AR.
Tal facto chegou aos ouvidos de Rui Rio, primeiro Vice-Presidente do PSD e que, como Presidente da Câmara Municipal do Porto, se transformou no principal adepto e utilizador desta legislação salazarista. Vai daí, o PSD, depois de ter dado o seu acordo ao “texto de substituição”, decide não o subscrever. Quando o texto, subscrito pelo PS, PCP e BE “sobe” à Comissão, o PSD propõe o adiamento da sua votação, com o argumento de que ainda acha possível que o mesmo seja subscrito pelo PSD. Aceite este adiamento, chegou então a informação de que, com a anuência da Direcção do Grupo Parlamentar do PSD, este partido iria subscrever o referido texto. Mas, surpresa das surpresas, quando se chegou ao momento da votação na Comissão, o PSD volta uma vez mais atrás e apresenta um projecto alternativo, procurando que a discussão se reiniciasse – o que foi permitido através da abstenção cúmplice do PS.
Este protelamento teve uma razão clara: permitir que Rui Rio “cozinhasse” uma nova proposta com António Costa (Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e, por sua vez, número 2 do PS), com quem tem mantido uma relação próxima, com elogios mútuos.
E assim aconteceu: o PS também rasgou o compromisso assumido e apresentou uma nova proposta, com um projecto que, de facto, revoga a legislação salazarista. Mas substitui-a por outra que permite, por exemplo, que os inquilinos municipais sejam despejados se derem às casas uma utilização “contrária aos bons costumes” (literal). Situação que é ainda mais grave, quando se sabe que este tipo de fundamentação não tem de ser previamente validada pelos Tribunais. Ou seja, as famílias são despejadas, recorrem ao Tribunal (se souberem e/ou puderem), este demora anos a decidir e, entretanto, as famílias aguardam na rua!
Daí a razão da abstenção do PCP na votação do projecto do PS. Pela forma como o mesmo surge e, também, pelo seu conteúdo. Refira-se, ainda, que os grupos parlamentares do PCP e do BE fizeram questão de levar a votação o tal “texto de substituição” previamente consensualizado. E fizeram-no porque o consideravam mais justo mas, também, para darem aos Deputados do PS e do PSD a hipótese de honrarem os compromissos assumidos. Em vão…
Deste modo ficou clara a forma como os partidos do bloco central se comportam. E que, afinal, depois de todo o alarido que o PS fez sobre os despejos no primeiro mandato de Rui Rio, demorou quase quatro anos a revogar a lei salazarista, substituindo-a por outra que foi aprovada com a cumplicidade de… Rui Rio!
Rui Sá
Engenheiro e Vereador da CDU – Coligação Democrática Unitária na Câmara Municipal do Porto